jueves, 3 de mayo de 2012

Um amor de aeroporto

Gustav Klimt - O Beijo
Um silêncio preenchia o ambiente. Não era o silêncio da falta de assunto, aquele que incomoda, e sim o oposto. Nada do que dissessem seria suficiente. O hotel, no centro de São Paulo, era o que podiam pagar, ela como jornalista e ele com sua bolsa de estudos. Travesseiros ruins e deformados, lençol áspero, colchão pouco confortável, mas tudo limpo. Ali também poderiam ser apreciados os piores quadros do mundo. Os dois sempre riam do mau gosto dos pintores e das sua divas.

Esse não era o lugar ideal, sabiam. Uma vez pegaram um quarto todo verde, que lembrava as paredes de um hospital, em outra, Paulo quase sofre um acidente. Durante o banho, o chuveiro pegou fogo, chamas por cima e água por baixo. Alícia não parava de rir. Ele se assustou, mas continuo seu banho em meio a nevoa de fumaça e o mal cheiro. Mesmo cientes da má qualidade dos serviços, incluso das toalhas, sempre voltavam ao fatídico estabelecimento.

Na verdade, não se importavam. Nada atrapalhava a sensação de estarem juntos numa cama, abraçados e nus. Cortinas fechadas para o mundo. Risadas gratuitas. Diálogos despretensiosos.  Olhares profundos, concentrados e perdidos no outro. Pele, boca e mão. Estavam entregues. Tinham sua própria dinâmica, já sabiam como desvendar um ao outro, eram íntimos e sempre os foram, desde que se conheceram.
  - Você pode me arrumar um cigarro?
Disse ela, que jurava ter parado de fumar. Estavam na Argentina, final de outubro de 2009, aeroporto de Córdoba. Paulo deu o cigarro. Estava acompanhado de duas amigas, e os três teriam ido à Córdoba para um congresso de filosofia. Alícia gostou do roteiro, achou interessante, já que só iria fazer um intercambio para aprender espanhol. Nada tão complexo. Todos precisavam de um táxi, o frio e o cansaço começavam a incomodar. Decidiram ir juntos. Racharam a corrida e trocaram contatos, com a certeza de que nunca mais se veriam.

No dia seguinte Alícia acorda junto com palavras estranhas. Na sala um alemão, na cozinha, um austríaco. “Em que língua digo bom dia?”, pensou.  O desconforto do primeiro contato convidou-a a dar uma volta na cidade, mesmo sem saber para onde. Andou muito, sem direção, não tinha mapa. Sem querer foi parar em frente ao hotel no qual Paulo estava hospedado, identificou a fachada, a mesma da noite anterior.
- Paulo, é a Alícia, nos conhecemos ontem no aeroporto.  Está afim de fazer alguma coisa?
- Oi Alíciiiaaa, tô sim (com voz de quem foi acordado). Mas você pode voltar daqui uma hora? To super cansado, fui dormir muito tarde.
- Ahhhh, tá bom, eu volto depois.
- Combinado, um xêru.

E ela voltou sem orgulho, nem se deu conta do primeiro não que havia levado. O dia estava azul demais para ficar sozinha. Insistiu. Ligou no quarto de Paulo e agora ele estava pronto, desceu. Começaram a caminhar. Ele indicava a direção, ela se deixava levar. Havia prometido a si mesma que nessa viagem não seguiria roteiros. Queria somente ir, se perder pelas ruas, não tinha grandes ambições e nem pressa. Estava disposta aos encontros e previa, fingindo que não, o acaso. Para a moça, viajar era isso.

“Para” “Atravessamos” “Subimos” “Cruzamos” “É para lá ou para cá?” “Cuidado com o sinal”. O sol não demonstrava pena e rigorosamente marcava sua presença. De vez em quando a brisa refrescava o trajeto que ia se transformando ao poucos, junto com os dois. Ele, sempre reservado, abriu o sorriso e correu quando avistou dois balanços; sentou-se em um, e começou a voar alto, estimulado por seu corpo magro e ágil. Era um doutorando em filosofia, estudava Espinosa um autor do século XVII e mesmo assim, era demasiado jovem. Lembrou dos desenhos da sua infância e falaram futilidades ao som de uma versão, em espanhol, de um sucesso brega brasileiro.

Alícia começava a escutá-lo com mais atenção, ele tinha uma calma admirável. Entre o estar no alto e estar embaixo ia lendo, no mesmo impulso do balanço, o desenho do pensamento dele, o ritmo de sua fala. “Que cara engraçado”, pensava, e já gostava do seu sotaque cearense. Ele falava o que vinha na cabeça. Ela também. Seguiram andando e sentaram no jardim de um bar.  Ao invés de uma cerveja de 650 ml, como no Brasil, “una botella de un litro”. Heineken. Política. Heineken. Infância. Heinekeni. Viagens. Heineken. Família. Heineken. Troca de olhares. Heineken. Um toque no braço. Heineken. Um beijo.

Perto dali, além da praça, havia um parque de diversões. Depois de uma foto ao lado da árvore de algodão doce, foram ao bate-bate. Das três rodadas que fizeram, Alícia  ganhou duas, embora Paulo negue até hoje. Em menos de oito horas juntos, conheciam-se, queriam-se, já se gostavam.  Ao final da noite não podiam mais se separar. Sentados em um banco, de uma praça qualquer, de uma cidade ainda desconhecida, a moça só queria ouvi-lo. O moço só queria falar. E disse algumas frases em seu francês perfeito, e ela se encantava. Naquela cidade viram-se só mais uma vez e o segundo encontro também foi igualmente doce.

Voltaram para São Paulo, cada um no seu tempo. Entre as viagens de férias dela e as de congressos dele, viam-se sempre, falavam quando a saudade pedia, nunca tiveram regras de comportamento, eram “levianos”. Como dois adolescentes, descobriam um sentimento forte, reconheciam suas diferenças, queriam a companhia um do outro e chegaram rápido em um lugar seguro: o da confiança mútua.

Fevereiro de 2010. Uma viagem maior, não de duas semanas, dois meses, mas de um ano. A mesma história que por sua vez já tinha atravessado fronteiras, estaria ilhada. A relativa distância de antes, o falar e se ver quando tinham vontade, desta vez estava determinada por 12 mil quilômetros e uma passagem só de ida. Alícia  iria embora para Espanha e Paulo ficaria em Sampa, trabalhando para defender sua tese.

O hotel era o mesmo, dessa vez escolheram o quarto maior, na tentativa de dispersar a agonia de uma despedida. Ela fazia força para impregnar em sua memória o cheiro dele, a textura de sua pele, do seu cabelo. Ele tentava colocar no bolso da jaqueta o sorriso dela e o calor de seu colo, o mais aconchegante que tinha provado. Um dia antes da partida, ao invés das juras de amor, promessas irrealizáveis de fidelidade e planos de se reencontrarem, não conseguiam falar. Foi um amor mudo, já saudoso. Só se abraçavam e cada um com sua dor, já sentia a ausência do outro. Choraram discretos, abraçados e de costas um para o outro. Permaneceram calados e tristes. Entregues, como sempre.  Um silêncio preencheu o ambiente. Não era o da falta de assunto, e sim o aposto. Eles que se conheceram no aeroporto de outro pais, agora viam a mesma causalidade que os uniram, separando-os. Até que enfim, algumas poucas palavras:

- Sentirei saudades, disse ela.
- Eu também, mi corazón.
- Não se esqueça da gente.
- Nem se eu fizesse Lobotomia – e continuou – Não sei porque me vejo chegando ao aeroporto de Madrid, e você lá, me esperando.

Paulo entrega sua tese no fim desse mês de abril. Alícia viaja para Veneza com uma amiga, para comemorar seu aniversário. Quase não se falam, além da distância, claro, o fuso horário e os estudos dos dois são os grandes vilões da história. Mas a vida segue e com ela esperam, mesmo fingindo que não, o acaso de um novo reencontro. Um aeroporto? Talvez mais um cigarro ou talvez só mais uma lembrança? Quem sabe?





1 comentarios:

  1. Anónimo7/23/2013

    HAHAHAHAHAHAHAAHHAHAHAHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHAHHH

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